Humanidade e Justiça - Supergirl - Mulher Do Amanhã (Woman of Tomorrow)

Supergil - Woman of Tomorrow- Tom Ellis, Bilquis Evely e Matheus Lopes
Há associações que, por vezes, são indissociáveis; há também, por vezes, as associações que podem ser dissociadas, mas teimam em não ser, seja por vontade própria ou não. Nós já conhecemos e ouvimos falar acerca da estória do Superman por diversas vezes, mas pouco se fala acerca da sua prima, Kara. Estórias de super-heróis têm atraído milhares aos cinemas, às bancas e às livrarias já há algumas dezenas de anos; todas contêm quase sempre a mesma fórmula, e a estória de Kara não seria assim tão diferente. Todavia, dessa vez, deparamo-nos com uma estória que, por tantas vezes, esteve intrinsecamente ligada à estória de outro herói. Como já afirmei acima, podemos associá-la ou não; ao não associarmos, encontramos a estória de uma jovem que também perdera o seu planeta natal, mas isso, entretanto, nos é apresentado de uma perspectiva totalmente diferente da que fora apresentada anteriormente por seu primo.
Em Mulher do Amanhã, temos acesso à estória dessa personagem que, muito provavelmente, sofrera bem mais que o primo famoso. A jovem Kara acabara de completar 21 anos e planeja, então, aquele que decidiu ser o melhor aniversário que já teve. No entanto, para uma kryptoniana, a celebração da maioridade esbarra em sua própria biologia: sob a radiação amarela da Terra, seu metabolismo invulnerável processa qualquer toxina instantaneamente, tornando a embriaguez impossível. Para contornar essa barreira divina, é necessário que ela viaje a um planeta banhado por um sol vermelho. Somente sob essa luz, que anula seus poderes e a reduz à fragilidade de uma mortal, seu organismo permite que o álcool faça efeito, concedendo-lhe a chance de entorpecer os sentidos e silenciar, ainda que momentaneamente, o peso de ser a última filha de um mundo morto.
Em contrapartida, também somos apresentados a uma outra jovem — bem mais jovem que Kara —, a pequena Ruthye Marye Knoll. Diferente da kryptoniana, ela não está ali para celebrar, mas para cumprir uma missão de sangue: vingar a morte de seu pai, assassinado pelo cruel Krem das Colinas Amarelas. Ruthye carrega consigo uma espada e uma determinação estoica, buscando contratar alguém forte o suficiente para ajudá-la a rastrear o assassino, e é justamente nesse cenário inóspito que os destinos dessas duas sobreviventes colidem.
O que se desenrola a seguir é uma sucessão de infortúnios. Ruthye é subestimada e ludibriada em sua busca por contratar um mercenário, mas o verdadeiro caos se instala quando o próprio alvo de sua vingança, Krem, entra em cena. Num ato de covardia, ele fere Krypto, o fiel supercão, com uma flecha envenenada e rouba a nave de Kara para escapar do planeta. A kryptoniana, que inicialmente relutava em se envolver, vê seu senso de bondade convergir com uma fúria pessoal: ela acaba por se compadecer da jovem e aceita a aliança, agora motivada não apenas pela justiça, mas pela necessidade urgente de caçar o vilão para salvar a vida de seu companheiro animal e recuperar seu único meio de voltar para casa.
A partir desse ponto, o que vemos é um enredo que não tem pressa em se desenrolar. A trama flui de maneira a nos entregar a origem de nossa heroína, as aventuras compartilhadas com Ruthye e as lições que ambas aprendem durante a jornada.
Há passagens nessa jornada que foram profundamente comoventes para mim. Destaco, por exemplo, o momento em que Ruthye utiliza um banheiro funcional pela primeira vez — um luxo impensável em seu mundo de origem, agora disponível a bordo da nave estelar. Ruthye, que atua como a voz narrativa da trama (e aqui, permitam-me o olhar de professor: se esta obra fosse um poema, ela seria, indubitavelmente, o nosso eu lírico), descreve sua rotina anterior com uma franqueza brutal. A higiene de sua família, embora não fosse nula, era precária, marcada pela escassez e pela dureza da vida no campo. Nesse trecho específico, a interação ganha contornos de ternura: Kara a ensina a lavar as mãos com sabonete e água quente, algo trivial para nós, mas revolucionário para a menina. Quando a kryptoniana indaga sobre a sensação experimentada, somos levados a refletir sobre o impacto que esse gesto provoca. Para alguém que sempre teve acesso a tão pouco, a oportunidade simples e genuína de se limpar com dignidade, sentindo o calor e a espuma, transcende a higiene; torna-se uma experiência de cuidado e humanidade. Por fim, eu poderia elencar todos esses elementos presentes na narrativa, mas contento-me em afirmar que todo o enredo, de maneira geral, é muito bem construído. Ao contrário do que li até o momento, nenhuma seção é menos importante ou enfadonha; mesmo capítulos específicos, como o 4 ou o 5, são essenciais para que tivéssemos um desenvolvimento completo das personagens — que têm muito em comum, mas ainda assim são bem diferentes. Acredito que o leitor encontrará nas páginas escritas por Tom King e ilustradas pelos brasileiros Bilquis Evely e Matheus Lopes uma estória envolvente e cativante, que resgata o nosso senso de humanidade e nos transporta para um mundo que, talvez, não seja tão diferente do nosso se olharmos com atenção. Ah, claro, não poderia deixar de afirmar: Kara, de fato, tem um senso de justiça mais apurado que o de Kal-El. E vou além: a estória dela se sustenta muito bem sem a dele.
Ficha Técnica
Título no Brasil: Supergirl: A Mulher do Amanhã Título Original: Supergirl: Woman of Tomorrow Roteiro: Tom King Arte: Bilquis Evely Cores: Matheus Lopes Editora Original: DC Comics Editora no Brasil: Panini Comics Ano de Publicação (EUA): 2021–2022 (originalmente serializada em 8 edições) Ano de Publicação (Brasil): 2022 (edição encadernada) Formato: Capa dura, colorido (17 x 26 cm) Número de Páginas: 224 páginas Gênero: Ficção Científica, Aventura, Drama Destaque: Vencedora do Prêmio Eisner 2023 de Melhor Minissérie. A arte de Bilquis Evely também foi indicada ao prêmio de Melhor Desenhista/Arte-finalista.